Artigo: Sistema Cross e a invisibilidade da dor – parte 1

“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.”

Pico do Amor. De lá se observa parte da cidade de Itabira (MG) e o grande fosso de extração de minérios. Lá está o Memorial Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao poeta e autor dos versos acima de 1928. No Memorial, encontramos a “pedra”, em exposição, algo do tamanho de uma caixa de sapato e que supostamente o poeta encontrou em uma das ruas da cidade. Lá reconheci a existência desta pedra, cuja repetida expressão no poema, manifesta-se também na vida dos brasileiros.

Após 60 anos da publicação do poema, o povo brasileiro representado no Congresso Nacional elaborava sua nova Constituição. A questão da saúde foi tratada como uma política pública includente, promotora de direitos: nascia o SUS, o Sistema Único de Saúde. Sistema porque as três esferas de governo – União, estado e município – compartilhavam responsabilidades na gestão.

Entre avanços e incertezas, o SUS se consolidou procurando garantir aos brasileiros o acesso universal, integral e igualitário aos serviços de saúde. No entanto, em quatro anos recentes, o negacionismo e a indiferença feriram sistematicamente o SUS. Atualmente, a saúde está entre as quatro maiores preocupações do povo brasileiro, segundo pesquisa Quest divulgada em julho de 2024.

Significa que a saúde do brasileiro não está bem. O sistema não está funcionando bem.

Um elemento crucial na gestão da saúde pública é a Regulação da Atenção de Média e Alta Complexidade. A regulação controla os recursos de atendimento: internações, exames e cirurgias. Intermedia as solicitações das instituições de saúde de menor complexidade para as de maior complexidade.

No Estado de São Paulo, as ações de regulação foram iniciadas em 1989. Em 2 de agosto de 2010, por meio do Decreto 56.061, o governo estadual criou a Central de Regulação de Ofertas do Sistema de Saúde (Cross).

O Sistema Cross tinha um objetivo maior: o fim das filas de pacientes em hospitais e unidades de atendimento especializado.

Terminar com as longas filas era um propósito coerente, uma meta de objetivos humanitários e democráticos.

Se o caminho era ideal para a Regulação/Cross, obstáculos foram sendo colocados no trajeto durante estes anos. No meio do caminho, foram colocadas “pedras”. Falaremos, particularmente, sobre quatro delas:

A primeira pedra no caminho: o Cross tornou-se aos poucos um sistema de tecnologia de informação. É comum ouvirmos dizer que “o problema da saúde não é dinheiro, é gestão”. O Mercado, acima de tudo e de todos, propaga isto para sugerir que devia-se buscar gestões mais “eficientes”, de menor custo, podendo utilizar modelos ou técnicas do setor privado e, até mesmo, utilizar o setor privado para gerir a saúde pública.

Foi o que aconteceu: o Sistema Cross no Estado de São Paulo é gerido e operacionalizado, desde 2021, por uma entidade privada, a SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina. O Governo do Estado tem orçamento exclusivo para pagar a associação: o termo aditivo do contrato de gestão para 2025 tem o custo de R$ 122.280.360,00.

O que resulta deste contrato? A associação intermedia as solicitações das instituições de saúde através de um sistema de computadores. Movidos pela lógica mercantil, uma gerência da procura e da oferta.

Na outra ponta, os pacientes e suas famílias ficam à sorte, esperando o chamado de um “sistema” de computadores. Aos 58 anos, a senhora Anastácia de Sumaré espera uma cirurgia. Toda vez que se dirige à Regulação do Munícipio recebe a informação de que está na fila: “Tô numa fila que nunca vi e nem sei direito em qual fila… só sei que parece não ter fim”.

É uma espera de dor e sofrimento. Diante das fortes dores no quadril, o senhor Aparecido, de 63 anos, toma remédios constantemente à espera, há quatro anos, de uma cirurgia ortopédica. De Andradina, ligou ao nosso gabinete: “Por favor, me passem o telefone ou o endereço deste Cross, pois não aguento mais tanta dor…”.

Um sistema tecnológico resolveria a complexidade que envolve a saúde pública? Theodor Adorno em 1965, nos “Estudos sobre a Personalidade Autoritária”, afirma que há uma tendência de fetichização da técnica, como algo que tem força própria e constitui um fim em si mesma, instrumento apto para a manipulação da população. As relações sociais são substituídas por relações comerciais, terceirizadas, no caso do Cross paulista.

Como fazer deste processo de Regulação da Saúde algo mais dialógico com as realidades locais e mais humanizado? Por questionar esta modalidade de gestão concedida a uma associação privada e não pública, por questionar um “sistema” que fica ancorado nas nuvens e não próximo da dor e sofrimento das pessoas é que criamos, em 2023, a Frente Parlamentar do Sistema Cross/Sus. Para jogar luz sobre esta realidade e dar voz aos que sofrem ou são solidários.

A segunda pedra no caminho: a centralização do sistema. O Cross opera de modo centralizado, também fisicamente, em uma localidade na capital paulista.

É um caminho e um processo totalmente inverso daquele espírito constitucional que criou o SUS. O sistema do SUS prevê a descentralização e a integração da saúde pública, uma distribuição de responsabilidades, atribuições e orçamentos que abrangem as três esferas de governo: federal, estadual e municipal. A atenção da saúde pública começa no município, esta é a ponta e o fim, é a referência para qualquer sistema que trabalhe com a saúde pública. Neste espírito, o saudoso governador do Estado de São Paulo, Franco Montoro, dizia: “Ninguém vive na União ou no Estado. As pessoas vivem no Município”. Em nome do Estado “mínimo” e da “eficiência”, o Sistema Cross paulista ainda não compreende isto.

Há necessidade de descentralizar o sistema, destinando este papel de regulação aos departamentos regionais de saúde (DRS) do Estado de São Paulo que estão divididos em 17 regiões. E ainda, os atuais objetivos dos DRS coadunam perfeitamente com a tarefa de regulação, a saber, a coordenação regional dos serviços de saúde e a articulação intersetorial. Há necessidade de uma gestão pública, executada por funcionários públicos aptos e portadores de deveres e obrigações públicas.

Por isso, temos nos dirigido à sociedade civil, às universidades, à Pastoral da Saúde, aos conselhos municipais de saúde, aos secretários municipais da pasta e aos profissionais da área para dizer sim à regionalização do Sistema de Regulação.

A regionalização otimizaria os recursos de saúde regionais, promoveria a busca de maior especialização na região de acordo com sua realidade e – muito importante – colocaria os pacientes em tratamento, mais perto de suas famílias.

Nas audiências públicas, temos ouvido relatos de translados absurdos de pacientes: é a oferta de um sistema que não enxerga. Nas secretarias municipais de Saúde, o deslocamento de pacientes, também para grandes distâncias, tem ocupado parcela significativa do orçamento próprio.

A partir do espírito da indiferença, a fila agora está dentro de um equipamento e distante da unidade local de saúde.

Cora Coralina em seu poema “Das Pedras”, em Meu Livro de Cordel, aponta um caminho:

“Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.”