“A Lei Maria da Penha também se aplica aos homens?” Essa é uma pergunta que surge com certa frequência em entrevistas e debates sobre violência doméstica. A resposta é sim e não, ao mesmo tempo. Sim porque, como toda lei, ela depende de interpretação (e há casos em que juízes a aplicaram em defesa de companheiros agredidos) e não pelo fato de ter sido criada para proteger mulheres em situação de violência.
Antes de qualquer coisa, é importante esclarecer que a lei federal 11.340/2006, que completou 15 anos no último dia 7 de agosto, é resultado da luta da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que foi agredida pelo marido durante seis anos até ficar paraplégica, após ser baleada por ele em 1983. Seu agressor ainda tentou matá-la por afogamento e eletrocussão e só foi punido após 19 anos e seis meses de julgamento, ficando apenas dois anos na prisão. Por conta disso, Maria da Penha virou símbolo de luta contra a violência doméstica e deixou de ser vítima para se tornar lei.
Portanto, a legislação de proteção à mulher não existe por acaso. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apontam que 72% das 105 mil ligações recebidas, no ano passado, pelos canais de denúncia de violações de direitos humanos do governo federal – Ligue 180 e Disque 100 – reportaram violência contra mulheres. Foram 75.994 casos registrados pelos serviços, que funcionam 24 horas por dia.
A cultura machista enraizada na nossa sociedade cria um ambiente de perigo constante para as mulheres, dentro e fora de casa, tornando necessário o aprimoramento permanente de medidas de prevenção e proteção. Diferente da situação do sexo oposto. Afinal, são raras as notícias de homens que andam nas ruas com medo de serem estuprados, são abusados sexualmente por suas (ex) parceiras, apanham porque deixaram de “arrumar a casa” ou de preparar a “comida certa”, escondem sob as roupas marcas das agressões da parceira ou têm os salários integralmente retidos pelas esposas.
As estatísticas mostram que, por gozarem de posição de poder privilegiada na sociedade, os homens não precisam de lei específica para protegê-los das mulheres. E, caso sejam agredidos e necessitem de defesa, podem se valer dos códigos de Processo Civil e Penal.
Infelizmente, apesar da efetividade da Lei Maria da Penha, reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como uma das melhores legislações do gênero do mundo, vivemos um momento de retrocesso no arrefecimento do machismo, que é a base da violência, e no processo de defesa dos direitos humanos das mulheres.
Depois de uma década de avanços legislativos importantes, com leis como a Maria da Penha e a do Feminicídio (13.104/15, criada em março de 2015), passando pela eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente da República do nosso país, o que vigora atualmente é uma estratégia ideológica para minimizar a importância da mulher.
A começar pela Esplanada dos Ministérios, que tem apenas duas mulheres – Damares Alves (Mulher) e Tereza Cristina (Agricultura) – entre 22 pastas. Além disso, a maneira com a qual o governo federal lida com a questão mostra que o termo “família” não foi inserido por acaso no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Em julho do ano passado, no auge da pandemia, o governo lançou uma campanha de combate à violência contra a mulher, no contexto do isolamento. O slogan (“Denuncie a violência doméstica. Para algumas famílias o isolamento está sendo ainda mais difícil”) omitiu a palavra mulher. A ideia foi deslocar o sofrimento produzido pela violência – predominantemente feminino – para a família. Narrativas como essa reforçam o machismo, diminuem a importância da mulher e sugerem perguntas como a que abre esse texto.
No âmbito legislativo, o cenário é de estagnação. Nos últimos cinco anos, não houve avanço na legislação de enfrentamento à violência e valorização da mulher no país. A lei número 14.188/21, por exemplo, foi alardeada como novidade, prevendo a inclusão da violência psicológica contra a mulher no Código Penal. No entanto, o crime já está previsto na Lei Maria da Penha. Nesse caso, a tipificação figura como passo de tartaruga diante do longo caminho que nos separa da igualdade entre homens e mulheres.